Por Carmen Vasconcelos
Pensando em escrever sobre o começo do amor, lembrei uns versos de Eugênio Montale. Quando eu digo lembrei, quero dizer, eles vieram, os versos, e esta é a relação de maior prazer que tenho com a poesia: quando versos vêm por eles mesmos, por fragmentos, quando eles se escolhem, não eu, embora venham para atender uma necessidade minha. Aí a lembrança é só satisfação. Ah, eu falava dos versos de Montale. Não foi fácil achá-los hoje, preciso ler mais meu poeta. Enfim, encontrei-os. São do poema Götterdämmerung: “os inícios são sempre irreconhecíveis/ quando se constata alguma coisa é porque ela já/ está cravada como um alfinete”. O poema não fala de inícios de amor, mas penso que esses versos traduzem a obscuridade e confusão do começo da relação amorosa. Pelo menos me chegaram quando eu divagava sobre a floração do sentimento de amor, sobre os momentos nos quais, assaltados e sobressaltados por ebulições que nos tiram do eixo e não sabemos para onde vão nos levar, somos tomados pela insegurança. Digo com a palavra amor o que muita gente diz com outros nomes. É que não concebo o amor diferenciado, discriminado, dissecado. Nunca vi sentido em separar amor de paixão e muito menos em vê-los como sentimentos antagônicos. O que aqui chamo de amor é talvez o que outros chamem paixão ou entusiasmo ou encantamento. Ou feitiço. Ou vodu. Para mim, é amor. E amor, mesmo cortante, crava-o em nós um deus. Então, vamos a Eros, o começo. Eros, o “demônio poderoso”, regente daquele período no qual, sem pedir licença, uma pessoa toma posse do nosso pensamento. Estabelecemos não uma, mas duas relações: com o outro e com o sentimento do outro, esse que se volatiliza. Esse que nos inquieta: amamos. Somos amados? Nem deus sabe. Pudéssemos estar certos da força, da perenidade, da verdade do amor do outro, conheceríamos calmaria. Pudéssemos adivinhar se amanhã o amor do outro estará arrefecido, acionaríamos os nossos mecanismos de recuo enquanto os temos, se é que ainda os temos, pois também eles se volatilizam quando menos esperamos. É todo inquietação o começo do amor. A amiga ensina um “mantra” para acalmar: “seja intenso enquanto dure”. E quando o fantasma da perda perturba a repetição do mantra? Quando o telefone não basta, o torpedo no celular não basta, o e-mail não basta? Resta-nos apelar ao místico poeta: valei-me, São João da Cruz, nessa “doença de amor que só se cura/ com a presença e com a figura”. A ansiedade pela figura fez o bardo Orfeu perder a amada. Para resgatá-la da morte, ele precisava acreditar que ela estava atrás dele, porque isso lhe dissera a deusa dos infernos, mas não podia olhar para trás, tinha de confiar. Mas basta a só impressão da ausência do outro para nos esvaziar, o amor roga contemplação e toque. Ao virar-se para ver sua Eurídice, Orfeu desobedeceu à deusa, e a imagem da amada desapareceu para sempre. Condenaríamos Orfeu? Não, o amor, ainda mais no começo, conjuga o verbo pegar. Então, que amor se chamaria amor, se não ousasse desobediência? Desobediência, risco, incerteza... Ou você ama, ou constrói escapes. Quando nos damos conta, o amor já está cravado como alfinete ou flecha, destilando a insegurança que o mineiro Celso Adolfo tão bem decantou, na canção “Nós dois”: “e nós que nem sabemos quanto nos queremos/ que nem sabemos tudo que queremos/ como é difícil o desejo de amar/ (...) e nós que nem soubemos nos querer de vez/ estamos sós, laçados em dois nós...”
Um comentário:
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