Navegando pelo substantivo plural, pluralíssimo e singular, do grande jornalista Tácito Costa, colhi esta preciosidade que vocês lerão logo abaixo.
Aconselho aos leitores do substantivo, que passem por Carmen e conheçam sua poesia.
Agora, fiquem com Manuscrito encontrado em pétalas.
Pois então não me compreendeste? Não precisava... Não, não me fiz de palavras para isso. Eu me fiz assim para ofertar fragmentos. Como restos de rosas decorosas. Com muita paciência, como quem se confirma, eu escolhi sílaba por sílaba, pétala por pétala, fui me escolhendo. Então tu não sabes? As palavras são os limites dos sentimentos, sua conformação, suas medidas. Fala, e estás diluindo-te! Deus, que é Deus, um dia sentindo-se muito, quis esparramar-se e fez-se verbo. Imagina eu, então. Tu pensaste que eu ficaria calada para me decifrares? Eu não. Não iria ficar esperando Deus dar bom tempo. Primeiro, a gente faz. Depois, Deus abençoa. Eu fiz. Fiz-me palavras, tornei-me posse de alguma coisa sagrada. Senti-me numinosa, possuída como as divindades, mas não era tempo de compreender.
É que eu era mesmo emoção. Desguardada. Como as estrelas cadentes desguardadas, rasgando o céu em busca de rotas, eu era assim, sem palavras. Eu não tinha palavras, tinha fé, e a minha fé era viva. Era viva, porque rebentava na carne. Viva, porque era oferenda para a minha vulnerabilidade. Eu sem palavras, desguardada. Mas não procurei palavras para curar-me da fragilidade, não foi para negá-la, não para escondê-la. Muito menos para explicá-la. Ao contrário, a minha fragilidade é que precisava curar-se de seu pudor. A minha fragilidade teve o despudor de mostrar-se, pulsando ofertada na incompreensível palavra Ser. Para falar-te, eu sei, é preciso muito cuidado, e ninguém sai ileso do que escreve, mas... Eu quero falar com cuidado sobre o pudor...
Sabes, o pudor, a vergonha, essas coisas de dois gumes, duas faces, elas têm duas bocas, uma boa e outra perversa. Guardam, mas guardam sufocando. Ferem as entrelinhas, cortam as linhas, sangram os sentidos. Compreenderias o pudor, mas, como quem se confirma, eu o neguei, neguei a vergonha e cometi ‘eu te amo’. Como restos de rosas decorosas. Foram as minhas primeiras palavras, eu me lembro. Começou com um balbucio, letras desgarradas salivando dentro da boca, era ainda bem pouco parecido com palavras, tinha mais gosto de assombração. Mas ‘eu te amo’ fez-me forte, alada. Depois foi ficando com gosto de ranço, depois virou fruta apodrecida no chão, que ninguém apanhou, nem comeu. Vai servir de adubo orgânico ‘eu te amo’. ‘Eu te amo’ está puído, roído no papel, e todo mundo vê ‘eu te amo’ sem viço. ‘Eu te amo’ é uma lua doendo e está sem brilho, exposto nas bancas de revista junto à manchete do jornal: “marido mata mulher a facadas”. Está baldeado como água teimosa. ‘Eu te amo’ perdeu todos os dentes, está seco e fica bulindo no sereno, porque não tem para onde ir, nem cama, nem teto. Está machucado, ferido de silêncios, está mudo, privado das suas canções de ninar. ‘Eu te amo’ bem sente, a escuridão tem a cor do tato, mas não diz: meu corpo só existe onde o teu tateia (porque não pode dizer). Cometi um ‘Eu te amo’ que sabe: ninguém sai ileso do que ama.
Eu te amo não são mais palavras que me façam. Faço-me de outras. Como restos de rosas decorosas, como versos de poemas indecorosos: sílabas vermelhas/pétalas/pistilo. Tu não compreendes poesia, nem pétalas, pétalas não são para se compreender. Tu não imaginas nada, além da compreensão, para fazer com pétalas? Ter cuidados... Não, talvez tu não tenhas sido feito para ter cuidados...
Pois não importa se não me compreendeste, eu também não me fiz para ti. Fiz-me para as noites que aguardei, as noites, estas sim, que eu te guardei e tu guardaste para mim. Fiz-me para as noites dilatadas, varando meus dias enfermos de ausência com rajadas de estrelas fumegantes. Estrelas cadentes desguardadas. As noites tão minhas, porque tuas, que me afiaram afetos, que me alforriaram a carne, que me aferraram à vida.
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