JUSTIÇA OU LINCHAMENTO?
Roberto Romano
O desejo de ouvir perversões morais está na origem da imprensa sensacionalista. Um fato se amplia ao ser publicado. Elias Canetti diz que o inferno é a pior invenção humana. Depois que ele foi imaginado, todos os tormentos são previsíveis. Setores da imprensa, associados a grupos que não merecem o título de polícia, fabricam a unanimidade que expulsa análises e prepara almas para o inferno. O pretexto pode ser a luta contra a corrupção, a notícia com seu interesse público, o assassinato de uma criança. O que se faz realmente é armar o espetáculo dos “populares” que transformam dor e violência em dança de hienas.
Plutarco diz que existe o erotismo do mal e pergunta ao curioso: “Porque olhas, atento, as doenças alheias/ homem perverso/ se não percebes as tuas próprias mazelas?”. Algo próximo à diatribe de Jesus: “Por que vês o argueiro no olho de teu irmão, e não reparas na trave que está no teu próprio olho? (...) Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho” (Lucas, 6, 36-42). O malvado se alegra com a infelicidade alheia e “põe seus olhos num copo de água, mas ao sair de casa os coloca para ver o que se passa na vizinhança” (Plutarco). Curiosos não suportam enxergar sua própria vida enfadonha. Quando ouvem a narrativa de um casamento, ficam desatentos, bocejam. Mas se alguém fala de uma jovem violada ou seduzida, adultério ou briga entre irmãos, eles despertam, exigem detalhes, gozam. Curiosos adoram ouvir e contar coisas picantes. A constelação medíocre da maledicência é o solo de onde brotam as sementes infernais. A hiena “humana” ouve o rádio ou enxerga a imagem na TV, corre à feira, ao bar, paróquia ou escola. E finge indignação, parola sobre justiçamento, pena de morte e tortura, horrores de sua mente perversa. Lei, juiz, advogados, todos os recursos e operadores do direito são por ela vilipendiados entre berros e gargalhadas. Curiosos só conhecem o linchamento.
No caso dos Nardoni - culpados ou inocentes - o clima é de carnaval nas trevas. Até fantasia de árabe aparece, os manifestantes mostram alegria luciferina. Regressão à animalidade? Animais não cantam nem dançam, não comem bolos sacrílegos, não se alegram com a dor dos seus iguais. Histeria coletiva, ou demônio nos olhos, gargantas e corações dos propensos ao seu império? A ciranda das multidões evidencia a existência diabólica, o ensinamento mais realista do cristianismo.
Na semana passada, com a desculpa da luta contra a corrupção, a Polícia Federal prendeu um advogado, nele colocou algemas e o exibiu na mídia. A OAB paulista clama contra as prisões desnecessárias, invasões em escritórios de advocacia, uso desnecessário de algemas. Gravíssimo: tais abusos são autorizados pela justiça. Qual lei garante à polícia gerar semelhante espetáculo midiático ? Em países civilizados a TV mostra os suspeitos com os rostos embaçados, não raro incógnitos. Quando uma pessoa se move em massa humana, perde a dimensão dos direitos e deveres. Nem desconfia que o linchado hoje pode ser inocente. E nem desconfia que ela mesma pode ser linchada amanhã.
Segundo Montesquieu o ser humano submetido à religião, à lei, à própria palavra, está próximo da divindade. Ele só é gente ao reconhecer interditos à sua violência natural. Longe de repetir a lei de Talião ou o rito do bode expiatório, a justiça define interditos de natureza racional. “O jurídico é paramentado por uma autoridade sagrada, mas a partir desse momento, o sagrado terá apenas uma função jurídica. A violência humana foi superada pela linguagem razoável da lei”(J. Starobinski, Montesquieu). A justiça sacraliza o melhor do humano, a vontade de manter a palavra. A lei impede a guerra e a violência de assolar o coletivo. O Brasil não confia na palavra dos cidadãos e não pode confiar na palavra dos governantes. O Brasil só confia em algemas, truculência policial, espetáculos arrogantes dos animais fortes. O Brasil só confia nas propinas, nos meios ilegais de garantir o mando de indivíduos e grupos. O Brasil está longe das ordens divinas, é inquilino do inferno.
Roberto Romano
O desejo de ouvir perversões morais está na origem da imprensa sensacionalista. Um fato se amplia ao ser publicado. Elias Canetti diz que o inferno é a pior invenção humana. Depois que ele foi imaginado, todos os tormentos são previsíveis. Setores da imprensa, associados a grupos que não merecem o título de polícia, fabricam a unanimidade que expulsa análises e prepara almas para o inferno. O pretexto pode ser a luta contra a corrupção, a notícia com seu interesse público, o assassinato de uma criança. O que se faz realmente é armar o espetáculo dos “populares” que transformam dor e violência em dança de hienas.
Plutarco diz que existe o erotismo do mal e pergunta ao curioso: “Porque olhas, atento, as doenças alheias/ homem perverso/ se não percebes as tuas próprias mazelas?”. Algo próximo à diatribe de Jesus: “Por que vês o argueiro no olho de teu irmão, e não reparas na trave que está no teu próprio olho? (...) Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho” (Lucas, 6, 36-42). O malvado se alegra com a infelicidade alheia e “põe seus olhos num copo de água, mas ao sair de casa os coloca para ver o que se passa na vizinhança” (Plutarco). Curiosos não suportam enxergar sua própria vida enfadonha. Quando ouvem a narrativa de um casamento, ficam desatentos, bocejam. Mas se alguém fala de uma jovem violada ou seduzida, adultério ou briga entre irmãos, eles despertam, exigem detalhes, gozam. Curiosos adoram ouvir e contar coisas picantes. A constelação medíocre da maledicência é o solo de onde brotam as sementes infernais. A hiena “humana” ouve o rádio ou enxerga a imagem na TV, corre à feira, ao bar, paróquia ou escola. E finge indignação, parola sobre justiçamento, pena de morte e tortura, horrores de sua mente perversa. Lei, juiz, advogados, todos os recursos e operadores do direito são por ela vilipendiados entre berros e gargalhadas. Curiosos só conhecem o linchamento.
No caso dos Nardoni - culpados ou inocentes - o clima é de carnaval nas trevas. Até fantasia de árabe aparece, os manifestantes mostram alegria luciferina. Regressão à animalidade? Animais não cantam nem dançam, não comem bolos sacrílegos, não se alegram com a dor dos seus iguais. Histeria coletiva, ou demônio nos olhos, gargantas e corações dos propensos ao seu império? A ciranda das multidões evidencia a existência diabólica, o ensinamento mais realista do cristianismo.
Na semana passada, com a desculpa da luta contra a corrupção, a Polícia Federal prendeu um advogado, nele colocou algemas e o exibiu na mídia. A OAB paulista clama contra as prisões desnecessárias, invasões em escritórios de advocacia, uso desnecessário de algemas. Gravíssimo: tais abusos são autorizados pela justiça. Qual lei garante à polícia gerar semelhante espetáculo midiático ? Em países civilizados a TV mostra os suspeitos com os rostos embaçados, não raro incógnitos. Quando uma pessoa se move em massa humana, perde a dimensão dos direitos e deveres. Nem desconfia que o linchado hoje pode ser inocente. E nem desconfia que ela mesma pode ser linchada amanhã.
Segundo Montesquieu o ser humano submetido à religião, à lei, à própria palavra, está próximo da divindade. Ele só é gente ao reconhecer interditos à sua violência natural. Longe de repetir a lei de Talião ou o rito do bode expiatório, a justiça define interditos de natureza racional. “O jurídico é paramentado por uma autoridade sagrada, mas a partir desse momento, o sagrado terá apenas uma função jurídica. A violência humana foi superada pela linguagem razoável da lei”(J. Starobinski, Montesquieu). A justiça sacraliza o melhor do humano, a vontade de manter a palavra. A lei impede a guerra e a violência de assolar o coletivo. O Brasil não confia na palavra dos cidadãos e não pode confiar na palavra dos governantes. O Brasil só confia em algemas, truculência policial, espetáculos arrogantes dos animais fortes. O Brasil só confia nas propinas, nos meios ilegais de garantir o mando de indivíduos e grupos. O Brasil está longe das ordens divinas, é inquilino do inferno.
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