Na sua ausência, me perco na liberdade que só a solidão pode oferecer. Dona de meus próprios domínios, sem você, deixo nascer a tirana que habita em mim.
Você acaba de me dar um beijo e sair. É domingo e faz frio lá fora. Dia ideal para ser perdido entre chamegos, afagos, mimos, xícaras de café e, maistarde, taças de vinho. Mas não esse. Você precisa sair e vai demorar para voltar. E tá tudo bem porque, com você longe de mim, posso me entregar à leitura do jornal sem ser interrompida para responder se lembrei de pagar a conta de luz na sexta ou se pretendo ir à Cobasi comprar a ração dos cachorros – essa, mais uma imposição do que uma pergunta. Embora não pretenda ir, digo que vou para poder voltar ao jornalmais rapidamente. Tá tudo bem, porque é com você longe de mim que posso fazer um pouco mais de café sem ter que obedecer ao comando de desviar para ir apagar a luz do quarto que, tenho certeza, quem acendeu foi você e não eu. E posso, quando bem entender, ligar a TV e deixar o volume alto, mesmo que eu decida continuar na sala lendo o jornal: você não está por perto para fazer bico, para pedir que eu levante e abaixe o som ou, em casos extremos, para que eu simplesmente desligue o aparelho. Posso inclusive escolher deixar a TV desligada, por minha própria vontade, mas ligar o rádio para saber mais a respeito dos jogos da tarde; sem você por perto, não tem ninguém para reclamar de minhas manias.
Ditadura
Aliás, com você longe de mim, posso gritar para que as cachorras, esses dois quadrúpedes hiperativos que moram aqui, nem pensem em se aproximar do meu café ou do meu jornal porque agora sou eu quem controla essa área, sou dona exclusiva de meus domínios. Com você longe de mim, nasce a ditadura, morre a democracia e revela-se a tirana que habita em mim. Pelo menos sob o ponto de vista canino; ao meu comando autoritário, as duas cadelas imediatamente emitem um som de súplica e saem à sua procura, em busca de proteção; elas sabem que o papel do “policial ruim” é meu. Mas, naturalmente, voltam com o rabo entre as pernas porque, finalmente, perceberam o que eu já sei há quase uma hora: que você não está. Então, derrotadas, simplesmente deitam à espera do seu retorno. E nem dão bola para meu estado de espírito. Porque é quando você não está que posso deixar o cabelo preso como bem entender: você gosta dele solto, para poder mexer, bagunçar, despentear. Você tem essa mania de ficar com a mão no meu cabelo. Então, a primeira coisa que faço quando o portão da garagem se fecha é pegar o elástico e prender bem forte, quase uma provocação. Mas aí lembro que é uma provocação vã, porque você não está. Só que também lembro que, com você longe de mim, posso colocar aquela playlist que já tá gasta e que você não agüenta mais. E posso ficar deitada, olhando o teto e pensando na vida, sem ter que ir ver se a água quente já voltou. Com você longe de mim posso navegar pela internet à vontade, sem ter que, bem na hora que finalmente encontro a informação que procurava, contar como foi a visita que fiz à minha irmã, como estavam as crianças, como foi a festa ontem.
Cachorros no sofá
Com você longe de mim me perco nessa liberdade que só a solidão é capaz de oferecer. E então aumento o som, pego um livro e, sem que você veja, autorizo as cachorras a subirem no sofá, atitude que deixaria você muito feliz, porque você ama ter as duas por perto, ama ver o sofá cheio de pêlos, ama me ouvir mandar elas descerem. Mas você não está e eu, quando você não está, deixo as duas subirem. É uma provocação, mais uma. Porque quando você não está não existe o risco de ser parada no meio da sala, enquanto estou indo colocar mais café na xícara, com aquele abraço apertado e demorado, sempre cheio de más intenções. Quando você não está, não existe a possibilidade de ser tirada de meu cochilo com um beijo molhado na boca. Também não tem quem, sem aviso prévio, pegue meu pé para fazer massagem, ou quem me ofereça torrada com queijo e geléia no meio da manhã, me pergunte sobre o que estou lendo e queira ouvir a explicação, mesmo que seja sobre o assunto mais chato do mundo. Sem você por perto, não tem quem se interesse por minhas histórias cotidianas, quem ria de minhas piadas tolas, quem converse com as cachorras como se elas fossem crianças de 5 anos só para meu entretenimento. Quando você não está não tenho com quem comentar um trecho do livro a respeito do Almodóvar que li ontem, não tenho por que fazer um pouco mais de café ou para quem ir buscar um Yakult na geladeira. Quando você não está, falta um pouco de mim, falta toda a graça, falta metade da vida: quando você não está, parte de mim também vai embora. Então, quando ouço o portão da garagem abrir e vejo as cachorras correrem em euforia para recebê-la, sei que tudo está prestes a mudar. É quando você volta que sou mais feliz e posso, finalmente, soltar o cabelo.
Um comentário:
telga li seu comentário no blog de tácito.gosto de milly,ela tem outro texto muito bonito que posso mandar pra vc.tenho um blog também,por enquanto nada pessoal meu,coloco textos de outros autores,o endereço é:http://ameusamigos.blogspot.com/
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