domingo, 2 de março de 2008

Ciências do desejo - Ensaio Maria Rita Kehl

Por esses dias escrevi um pequeno artigo sobre a nítida e cruel contribuição dada pela propaganda à confusão de idéias, à devoção trágica ao que é fútil, à procura da estética perfeita do corpo, que permeiam milhares de mentes depressivas e angustiadas nesta era dita "pós-moderna".
Deixo para você uma parte do ensaio da psicanalista Maria Rita Kehl, que fala também desta questão. Fiquem com o sabor especial e as lições desta leitura. É só tomar fôlego!

Por Maria Rita Kehl:
Uma amiga de meu filho perdeu a vida em decorrência de uma lipoaspiração. Fiquei sabendo que o horrível acidente, uma embolia pós-operatória, não é pouco comum. Sensibilizada com a morte da menina e com a dor dos pais, passei a acompanhar com mais freqüência o noticiário a respeito dos desastres que ocorrem em cirurgias estéticas ou em outras formas radicais de intervenção no corpo. A beleza, no século XXI, tornou-se caso de vida ou morte. Não é necessário recorrer a casos extremos para pensar criticamente a relação entre o corpo, as tecnociências e o desejo. Reconheço que há muitos aspectos, no que se refere aos dois primeiros termos, que fazem dos que viveram e vivem entre os séculos XX e XXI gerações privilegiadas, sem precedentes na história da humanidade.
Foi graças à ciência que milhões de mulheres no mundo todo saíram do “estado de natureza” e passaram a viver sua vida sexual independente da maternidade. Graças à ciência conquistamos longevidade, saúde, qualidade de vida, liberdade sexual e também – por que não? – beleza. Tudo isso diz respeito à relação entre a ciência, a tecnologia e o corpo. Mas tais conquistas não incluem nenhum avanço na relação entre os sujeitos e o desejo. Dizem, das novas gerações devotadas às técnicas de cultivo da forma, que são escravas do corpo. Não é exato. São antes escravizadoras do corpo. Obcecadas por um ideal de perfeição que parece cada vez mais ao alcance dos mortais, as pessoas fazem seus corpos trabalhar feito escravos, submetidos aos mais esdrúxulos procedimentos de remodelamento da imagem. É possível que os corpos contemporâneos não sejam mais sacrificados do que os de nossos antepassados, que viviam enfatiotados dos pés à cabeça no frio ou no calor, as cinturas estranguladas em espartilhos, os pescoços torturados por colarinhos altos e engomados, pés apertados em sapatilhas minúsculas, postura rígida, gestos estreitamente vigiados. A diferença é que hoje os sacrifícios se dão em nome da liberdade: a servidão é 100% voluntária.
Depois de uma rápida passagem, nos anos 1960/70, pela ideologia dos corpos “ao natural”, despojados de artifícios – outro engodo, aliás –, voltamos, em plena era do avanço de todas as libertinagens, a impor a nossos corpos uma disciplina férrea. Em nome do quê – do decoro, como no tempo dos bisavôs? Dos códigos que regem as diferenças sociais? Da rígida diferenciação estética entre os sexos?Sabemos que não. Hoje nos torturamos, antes de tudo, em nome do – desejo. Escravizamos os corpos para tentar fazer deles o objeto incontestável e unânime do desejo. A confiança de nossa cultura na ciência chega a ponto de acreditarmos que a indústria médica e farmacêutica teria desvendado, afinal, o mistério que cerca o objeto do desejo humano. Ao acreditar piamente no poder da imagem, pensamos ter finalmente enquadrado o desejo (inconsciente) sob o domínio do ego: desejar e fazer-se desejar seriam, de acordo com a idolatria pós-moderna, uma questão de perícia técnica.
O que interessa a meu argumento é que a obsessão pela imagem perfeita nos aproxima mais da frigidez narcísica do que do desejo. O que parece libertinagem é uma espécie bastante refinada de moralismo: recusamos o corpo vivo, pulsional, imperfeito e mortal, em favor de um corpo/imagem, pura exterioridade oferecido à cobiça e à contemplação, muito mais morto (do ponto de vista libidinal) do que parece.O que parece a máxima consagração das prerrogativas do indivíduo mascara um medo terrível das diferenças, das singularidades, das marcas diferenciadoras de cada um. Toda cultura impõe suas formas estéticas, mas nenhuma desenvolveu como a nossa a possibilidade técnica de produzir em série essas formas, na carne de cada um. O problema com os corpos industrialmente fabricados não é que sejam exageradamente artificiais. O que é mais artificial do que as escaras e pinturas indígenas, por exemplo, ou do que o ouro que cobria as vestes dos faraós? O problema é que nos peitos siliconados, nas faces imobilizadas pelo rigor mortis do botox – faces sem marcas de expressão, mas, por isso mesmo, sem expressão –, a grife e a fatura do artifício deixam sua inscrição junto com o produto final. Tais corpos podem ser catalogados, mapeados como os mapas do corpo das vacas estampados nos açougues, indicando os diversos cortes do bife: os procedimentos médicos deixam suas etiquetas (com as cifras do preço) nas intervenções de uma beleza cada vez mais padronizada. As marcas da singularidade do sujeito tendem a zero. O jeito de olhar, a ruga no canto do sorriso, o franzir do nariz são detalhes singulares que Freud associou ao fetiche, cujo poder em mobilizar o desejo é proporcional à sutileza.